quarta-feira, 1 de abril de 2009

Falam as partes do todo? / Charles Feitosa

Para além das partes e do todo
Charles Feitosa


Tudo que o filósofo olha vira matéria-prima para a roda-viva do pensamento. Ver o mais recente trabalho coreográfico da Cia de Danca Dani Lima,
Falam as Partes do Todo?, gerou em mim um turbilhão de idéias. E o que eu vejo? Dani Lima toca, através da dança, uma das questões mais fundamentais da filosofia, a relação entre as partes e o todo. Eu vejo essa relação ser exposta através de temas aparentemente díspares, tais como a compreensão usual do corpo humano; a inserção do homem na sociedade e até a possibilidade de uma nova conjugação entre a dança e o cinema. Aqui vão alguns pensamentos que se apoderaram de mim durante e após o espetáculo.

Tradicionalmente o corpo humano é interpretado como um organismo, ou seja, um sistema harmônico (o todo), composto de órgãos e membros (as partes), onde cada elemento tem um papel programado e específico. Segundo esse ponto de vista, a saúde do todo depende de que cada parte cumpra a sua respectiva função. O organismo fica doente, entretanto, quando um membro ou orgão do corpo para de funcionar ou passa a trabalhar autônomamente (como um tumor). Nesse caso a medicina tradicional só conhece dois tipos de terapia, reabilitar ou extirpar o orgão debilitado. A idéia de corpo como um organismo, um todo composto de partes, é radicalmente desconstruída no espetáculo de Dani Lima. Na interação dos dançarinos com as obras de Tatiana Grinberg, o espectador, circulando por entre corpos e objetos através do palco, vê de cada vez e sob ângulos diferentes, membros destacados, pendentes e autônomos, seja uma língua sem a boca correspondente, uma mão sem o braço que a suporta, uma perna isolada de seu tronco. Essa visão das partes sem o todo causa às vezes um efeito cômico, outras vezes uma sensação de profundo estranhamento, mas não deixa ninguém indiferente. Os órgaos sem o corpo são estranhos porque agridem a organização usual da natureza que há em nós, um todo constítuido de partes. Trata-se portanto do primeiro passo para a construção de um outro corpo, para além do organismo, como um campo por onde circulam forças, com intensidades e direções sempre diferentes, onde cada membro pode assumir uma diversidade infinita de funções e o próprio corpo não se define mais como uma totalidade essencial, mas como um acontecimento singular e imprevisível.

O outro tema levantado, a meu ver, na coreografia de Dani Lima é o do lugar do indivíduo na sociedade. Também aqui o pensamento político tradicional costuma interpretar a sociedade como um corpo coletivo (o todo), onde cada indivíduo (a parte) tem uma função específica e planejada. Na cidade ideal de Platão, por exemplo, a República, cada cidadão tinha uma tarefa própria: preparar o pão, construir as casas ou guardar a cidade. Quem se recusasse a desempenhar seu papel estaria sujeito a uma terapia de reeducação ou a uma intervenção cirúrgica através do exílio. Na dança da companhia de Dani Lima vejo a relação parte/todo na sociedade sendo reinventada, especialmente na última coreografia, pra mim a mais bela e a mais emocionante. Nesse último ato a bailarina Vivian Miller movimenta-se durante 15 intensos minutos por todo palco, sem tocar nem uma vez seus pés no chão. Ela não é simplesmente carregada, mas sustentada pelos corpos dos outros dancarinos, que vão se revezando de um lugar para outro, a fim de que haja sempre a possibilidade de um novo passo, de uma nova saída. Vivian parece ter alguns de seus gestos preplanejados em uma cuidadosa coreografia, mas a todo momento ela precisa reestruturar sua estratégia, explorando a diversidade e singularidade dos corpos dos colegas e até do público presente na sala. Tal como um alpinista ela escala montanhas, mas de uma forma sensual e misteriosa. O interessante é que nem os caminhos nem as montanhas são preexistentes, vão sendo construídos por onde ela passa. O fluxo constante dos dançarinos e a tensão entre planejamento e improviso, embalados pela música de Felipe Rocha, compõem um cenário hipnotizante. No trabalho coreográfico de Dani Lima vejo uma ruptura sutil com a teoria política tradicional, que coloca o todo (a sociedade) como meta das partes (os indivíduos). Não se trata apenas de uma inversão, como se agora a meta fosse fazer com que o grupo trabalhasse para um de seus membros (mantendo a dançarina sustentada, por exemplo). A coreografia nos projeta muito mais além, para um lugar em que o todo não mais existe enquanto um sistema fechado e consequentemente, em que os indivíduos não são mais partes (só faz sentido falar de partes onde há uma totalidade). O que temos então são apenas seres diferentes, instáveis, autômomos, que se tocam e se distanciam de muitas maneiras, que se associam e desassociam conforme o contexto e a situação. Dançar junto não significa mais então que as partes busquem se fundir em uma comunidade harmoniosa e sincrônica, nem que uma totalidade se coloque a serviço de um de seus membros. Dançar em companhia se mostra como uma experiência festiva, onde singularidades encontram outras singularidades de maneira assimétrica; tornando-se elas próprias outras, muitas, plurais. Vejo aí uma rica metáfora para o viver em conjunto, enfim para qualquer ética ou política do futuro.

Finalmente encontro no espetáculo
Falam as Partes do Todo?
algumas idéias acerca da relação entre a dança e o cinema. Confesso que extrapolo um pouco aqui, mas fazer filosofia, do jeito que a entendo e a pratico, consiste em levar uma reflexão às ultimas consequências, mesmo que pareça estranho ou exagerado. Sabemos que tanto a dança como o cinema são artes do movimento, mas enquanto a dança pode expor o movimento do corpo em uma multiplicidade de perspectivas, o cinema esta restrito à bidimensionalidade da tela. Parece haver uma incompatibilidade fundamental entre a coreografia e o filme, pois enquanto a linguagem da dança pode trabalhar com o volume do corpo (na sua totalidade), a linguagem cinematográfica lida essencialmente com cortes, planos, enquadramentos (as partes). Fred Astaire, por exemplo, o grande dançarino do cinema norte-americano, fazia questão que a câmera nunca focalizasse apenas seus pés, braços ou quadris, enquanto estivesse dançando. Para ele o efeito estético de sua coreografia dependia fundamentalmente de que o espectador tivesse acesso a todo o seu corpo e não apenas a partes dele. Em diversos de seus filmes a câmera restringe-se a seguir seus passos como uma escrava fiel e submissa, em longos planos-sequência. Sabemos que o filme pode fazer muito mais do que apenas registrar continuamente o movimento de um corpo, mas desconfio que até agora ainda não aconteceu um encontro entre a dança e o cinema de modo que um não reprima o outro ou a si mesmo de alguma maneira. A performance da Companhia de Danca Dani Lima abre, ao meu ver, uma nova perspectiva para a relação entre a dança e o filme, ao demostrar que é posssível permitir que o corpo do dançarino seja constantemente partido e literalmente enquadrado, sem que com isso se perca a percepção estética do movimento coreográfico. A dança é levada aos limites da bidimensionalidade e supreendentemente permanece sendo dança. O que pode surgir daí, sinceramente não posso prever, mas pressinto novas possibilidades de explorar a dança através das lentes do cinema. Em mim, pelo menos, o movimento dos corpos já se transmutou em ciranda de idéias e pensamentos.

Publicado no site idança em 20/10/2005

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