segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Pequeno inventário de lugares-comuns | Silvia Soter

Gestos de poesia e delicadeza nas coisas simples e banais do dia a dia
Silvia Soter / Segundo Caderno


Não foram poucas as tentativas, ao longo das últimas décadas, na dança e no teatro, de fazer com que a cena não fosse sempre e apenas o lugar do extraordinário. Esse deslocamento tem sido uma importante estratégia artística em muitos campos. Marcel Duchamp ou ainda, na dança, a geração da Judson Church, foram alguns dos artistas que fizeram avançar esta questão. No entanto, mesmo o que é simples, natural e banal, ganha um outro status quando ocupa a cena. A peça “Pequeno inventário de lugares-comuns”, projeto concebido pela coreógrafa Dani Lima, tem aí o seu maior desafio. Dani e mais quatro artistas, em processo de colaboração, trazem o foco justamente para aquilo que passa desapercebido no cotidiano.


A ambientação criada pelo artista plástico João Modé reforça a posição de fronteira entre espetáculo e instalação. Embalagens, peças de roupa, brinquedos, alimentos, utensílios domésticos, móveis e outros, estão dispostos em cena, formando um conjunto de 125 objetos pessoais e de uso cotidiano. Os vídeos de Paola Barreto e Lucas Canavarro trazem ainda imagens do dia-a-dia de uma casa.

De início, Dani Lima, Laura Samy, Vivian Miller, Felipe Rocha e Paulo Mantuano manipulam estes objetos, deslocando-os, rearranjando-os, combinando-os a partir de critérios diversos. Diante dos olhos do público, a composição realizada pelos artistas, ainda que breve, promove associações de idéias e produz novos sentidos para os objetos. O nonsense acaba por se transformar em sentido. Ao mesmo tempo, dá o tom do estado necessário para se entregar a essa peça. A projeção da combinação de objetos em pares é um achado. Um pouco à maneira das crianças que transformam pedrinhas em brinquedo, essa cena amplia, de fato, a visão sobre o pequeno e mostra a poesia do simples.


A dança propriamente dita surge em duos e solos e tem também no cotidiano sua fonte. A tentativa de integrar a dança à malha dos objetos é visível. Neste caso, integrá-la é não dar a ela destaque demais, é buscar um equilíbrio de valor entre a dança e os outros elementos da peça. São nos solos de Felipe Rocha, de Dani Lima, de Laura Samy e no duo das últimas, que a justa medida entre gesto e dança se realiza, já que a coreografia torna-se mais interessante quando consegue partir da gestual sem chegar em seu limite mais abstrato. Já os duos de Paulo Mantuano e Vivian Miller, muitas vezes, possuem um registro distinto de toda a peça. A dança, neste caso, parece descolada do ritmo e do conjunto objetos-gestos-imagens.

Ainda que, em cena, quase nunca se consiga escapar de transformar qualquer coisa em algo extra-ordinário, “Pequeno inventário de lugares-comuns” dá conta de tratar do que pretende com muita poesia e delicadeza. Traz para o centro a vida como John Lennon um dia sugeriu: como aquilo que acontece quando estamos fazendo planos.

Publicado no jornal O Globo em 26/09/2009

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Vida real em 3 capítulos | entrevista ao site idança

Vida real X Ficção
Entrevista com Dani Lima / idança

Performance-espetáculo-instalação. O mais recente projeto da Cia. Dani Lima, Vida Real em 3 Capítulos, está em cartaz no Conjunto Cultural da Caixa - Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro, até o dia 9 de julho. A estréia do Capítulo 1 (a performance Estratégia nº 1: entre) foi em junho, no Alkantara Festival, em Lisboa. Entre uma troca de fralda da pequenina Mia e checadas na produção, a coreógrafa Dani Lima conversou com o idanca.net.


Como surgiu a idéia do projeto Vida Real em 3 Capítulos?
Surgiu no final de 2004, quando fui convidada a fazer uma participação num projeto que integrava o Panorama Festival (o Encontros Imediatos 2005-2006*, em parceira com o Alkantara Festival, de Portugal). A Cláudia Müller, coreógrafa e bailarina carioca, partiu de uma frase do artista plástico brasileiro Leonílson que dizia:
“tudo que você quiser, o que você desejar, estou aqui para servi-lo” que pretendia questionar a relação de o artista, o performer servir ao espectador, fazendo aquilo para seduzi-lo. Cláudia queria discutir isso e chamou vários artistas, entre eles eu, para criar uma cena de 5 minutos. Seria num hospital abandonado e cada um teria um quarto e trabalharia nesse local, com um espectador de cada vez. Então comecei a desenvolver o que hoje é a performance Estratégia nº1: entre. Ali foi só uma experiência. Segui desenvolvendo. Fiz uma residência de um mês em Praga, na República Tcheca, onde a apresentei como trabalho em processo no festival 4 Days In Motion, e finalmente o trabalho integrou o projeto Encontros Imediatos e estréia agora.

É mais fácil ou mais difícil quando se tem uma platéia tão “individual”?

Não sei dizer se é mais fácil ou mais difícil. A relação é bem diferente. Não só porque é um espectador, mas também porque não é um show. Não é o caso. Esta performance não é exatamente uma apresentação para alguém, é um encontro. A performance discute um lugar de intimidade, muito privado. São duas pessoas que produzem uma experiência sensível que coloca questões como identidade, o quanto a minha é estruturada a partir do encontro com alguém, numa relação muito pessoal.


E Estratégia nº 1: entre foi feita em colaboração com Sodja Lotker e Marcela Levi, não é?
A Sodja Lotker apareceu justamente para o projeto Encontros Imediatos. Ela é dramaturga. Conheci ela em Praga e a chamei. No segundo momento do projeto (que tem três momentos: Lisboa-Rio-Lisboa), aqui no Rio, ela não pôde vir. Precisava de alguém para trabalhar comigo, então chamei a Marcela Levi. Então ficamos nós três trabalhando.


E o resultado final? O público respondeu às expectativas?
Foi super positivo. Foi super legal. Fizemos muitas apresentações. Foi cansativo, mas foi muito interessante porque não há só uma resposta. Cada pessoa é uma pessoa. Cada encontro é um encontro. Tem encontros bons, encontros ruins, encontros emocionantes, desagradáveis…


Já o Capítulo 2 – Manual de Instruções tem uma abertura maior de participação dos bailarinos, inclusive no figurino (criado por eles próprios, a partir de características de cada um…)

No Capítulo 2 eu não estou em cena. São cinco bailarinos que são criadores também. O trabalho foi todo desenvolvido em colaboração com eles, todos somos autores dessa peça. É um pouco um passeio pelas identidades deles, mas a partir de um outro lugar. Um lugar mais social. Essa parte traz as mesmas questões da performance, mas numa esfera pública, social. Os papéis sociais estão em jogo. O papel enquanto bailarino, enquanto brasileiro, enquanto pertencente a um grupo, seja de dança, uma nação, uma classe social ou um segmento de gênero.

E o nome? Como surgiu?
…A partir de regras e instruções, porque nos demos conta do quanto regras e instruções não falam diretamente de identidade, mas expressam todo um sistema cultural que tem um pensamento específico, ou que se expressa de um jeito específico. Você está revelando no jeito de propor, de dar uma instrução, todo um sistema de pensamento que compõe um contexto cultural em que se está inserido.

O Capítulo 3 – Eu é um outro já é uma instalação, renovada a cada dia. Por que este formato?

O projeto como um todo discute a relação vida real x ficção, um pouco colocando a pergunta: “existe vida real?”. A idéia é trabalhar a partir de registros que foram deixados durante a performance – fotografias, escritos, desenhos -, e durante o processo de criação do Capítulo 2. Trabalhamos com muitos objetos, então tem uma série de materiais que foram usados e que vão gerar uma instalação. Se o espetáculo é uma coisa tão efêmera, que acontece e acaba, e fica só na memória de quem estava ali, como isso é então trazido para uma idéia de permanência? A instalação pretende brincar com isso. É pensar a questão da efemeridade do espetáculo e a permanência do objeto, as coisas que passam e as coisas que ficam. E tudo a partir da experiência de quem viveu. Ao ver a instalação, a realidade na sua cabeça é construída a partir das ficções das experiências dos outros.


Como a questão da identidade, que tanto é abordada nos trabalhos da companhia, se relaciona com o desenvolvimento do que você chama de uma poética do corpo cotidiano?
O que eu chamo de poética do corpo cotidiano é trabalhar em termos de pesquisa de movimento e áreas de interesse em relação às questões do dia-a-dia da gente. Não são grandes questões, nem questões épicas ou filosóficas. Estamos sempre procurando como gerar movimentos não que fujam do padrão, mas me interessa observar como existe uma poética na vida cotidiana que a gente deixa de perceber… e isso também é dança. A questão da identidade entra aí e está em todos os meus trabalhos, pois me intriga. É uma questão do mundo, e que deixou – na segunda metade do século 20 pra cá – de ser um conceito fixo, uma idéia de algo estruturado. Começamos a ver a identidade como uma construção, que se forma a cada encontro. Não é estática como, aliás, todos os conceitos.


*Encontros Imediatos é um projeto realizado em parceria entre Alkantara (Lisboa) e Panorama Festival, onde coreógrafos do Rio e Lisboa colaboram com artistas de outras culturas em um projeto de residências em três fases (Lisboa – Rio – Lisboa).

Publicado no site idança em 23/06/2006

Vida real em 3 capítulos | Almanaque Virtual

A Cia Dani Lima mergulha na identidade corporal brasileira e cria um espetáculo onde mesmo o que não aparece é belo
Mario Piragibe / Almanaque Virtual

Um espetáculo de dança que se proponha a lidar com a questão da identidade contemporânea encontra-se obrigatoriamente diante de um vasto campo para manobra e exploração. O indivíduo desse início de século XXI, segundo alguns pensadores, é múltiplo e contraditório por natureza, sua identidade define-se pela superposição de referências (ou, como afirma Stuart Hall, encontra-se descentrado). Uma investigação dessa identidade no contexto de uma apresentação artística é um exercício de risco, mas também uma necessidade.

“Manual de instruções”, que a Cia Dani Lima traz ao Rio após alguns períodos de convivência com profissionais de todo o mundo em festivais internacionais e residências artísticas, busca localizar alguns elementos de uma identidade corporal brasileira. Ao que tudo indica essa convivência da artista com colegas de outros países encaminhou-se a uma determinada percepção de si mesma atravessada pelas percepções de um modo de ser brasileiro construído por indivíduos de outras nacionalidades. Como esse entendimento da identidade afirma-se por ser um conjunto de percepções, “Manual de instruções”, que se propõe a refletir essa questão, é um espetáculo rico em estímulos e provocações sensoriais. A beleza dos movimentos, o emprego de ilusões de ótica, a combinação de imagens e palavras, os silêncios calculados.

Há no espetáculo uma preocupação em subverter as expectativas do espectador com vistas a reorientar seu olhar. A atenção do público é guiada com precisão e delicadeza. O questionamento que se apresenta logo de início atua fortemente sobre essa “subversão” que mencionei, pois é feito um questionamento acerca da própria identidade da dança como linguagem artística. O figurino casual, a ausência da música ao longo de quase toda a apresentação, o palco praticamente despojado de qualquer elemento cenográfico, a iluminação inteiramente feita com lâmpadas fluorescentes (a chamada “luz fria”), a voz dos bailarinos, que constantemente quebram o silêncio que deles se espera para explicar os caminhos da apresentação, apresentam um questionamento evidente acerca das convenções entendidas a priori como parte do vocabulário da dança. Essa escolha na caracterização da apresentação, que a trata como algo ainda em construção, como um momento não obrigatoriamente culminante de uma investigação artística, vem a falar perfeitamente bem, não apenas das considerações feitas a respeito das artes do espetáculo de nossos dias, mas também do caráter móvel e inacabado da noção de uma identidade.

Os momentos (e movimentos) do espetáculo foram criados tendo como base os relatos de experiências pessoais dos bailarinos, o que determina bem o acerto da escolha de como se lidar com a questão de como os movimentos (no espaço e no tempo) de seus corpos ajudam a dizer quem são, e a que grupo humano pertencem. Essa investigação da identidade corporal brasileira não poderia se apresentar, à luz das considerações contemporâneas sobre o tema, de maneira melhor que com a sobreposição de narrativas individuais, o que dá a perceber sua vastidão e variedade de elementos. Nesse conjunto de idéias e vivências houve a clareza de se reconhecer que construções estereotípicas (máscaras do Zé Carioca, rótulos sociais, samba) também estão contidas na massa informe da identidade nacional. Que nós também somos formados pelos equívocos e generalizações que norteiam a idéia que o resto do mundo tem de nós.

“Manual de instruções” é uma festa para os sentidos. Consegue o feito de aliar consistência, em todos as questões que levanta, a humor, interesse, beleza. Não descuida do prazer por um instante que seja, e cria momentos em que o deleite visual confunde-se com o cômico, como na aula de samba em inglês, o método de vestir e desvestir uma camiseta, e a impagável “história da minha bacia”.

Mas talvez a contribuição mais intensa que “Manual de instruções” tenha a dar à nossa memória esteja nas ausências que o espetáculo invoca. Os desenhos feitos no ar, as menções à dança clássica despojada do aparato que a caracteriza, as referências ao que não aconteceu no espetáculo. A imposição sobre o palco do que não está lá cria momentos de forte impacto emocional e beleza. Nós, como indivíduos e como coletividade, somos formados também – ou de fato – pelo que resta daquilo que não somos, estamos preenchidos pelo tanto que não existe em nós. Como no belo momento em que a bailarina Vivian Miller nos apresenta um solo emocionante que não conseguiu preparar. A música toca para um palco vazio, e nós, das cadeiras, assistimos ao belo conjunto de possibilidades que invade inelutavelmente nossas cabeças.

Para ler:
O que vemos, o que nos olha. Georges Didi-Huberman (editora 34)
Identidade cultural na pós-modernidade. Stuart Hall (editora DP&A)

Publicado no Almanaque Virtual em 01/07/2006

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Falam as partes do todo? / Helena Katz

IDÉIAS E CORPOS INTELIGENTES
Helena Katz / Estado de São Paulo


Como se sabe, a dança contemporânea não traz respostas – o que dificulta bastante a sua aceitação. A sua mais singular característica, exatamente a que atrapalha a sua comunicação, está no fato de sempre fazer perguntas. A nós, sujeitos que entramos em contato com as suas manifestações, cabe buscar descobrir qual é a pergunta. Evidentemente, essa pergunta não precisa se apresentar na forma de um enunciado com o sinal gráfico de interrogação. Trata-se do modo de transformar o assunto da obra numa questão, um jeito de problematizá-lo, investigá-lo, refletir sobre seus caminhos, desdobramentos, possibilidades de realização. Às vezes, como no caso do mais recente espetáculo de Dani Lima, a sua explicitação no título mais atrapalha do que favorece.


O título nos pergunta:
Falam as partes do todo? e, quando se adentra, a hierarquia palco-platéia está dissolvida. Além de não existirem cadeiras propiciadoras de uma observação comandada pela perspectiva renascentista, estabelece-se um jogo entre o que se pode e o que não se pode ver. Com o espaço tomado por esculturas de Tatiana Grinberg, que convidam à circulação, os bailarinos exploram, com partes de seus corpos, os orifícios e as superfícies das obras, também espalhadas aos pedaços.

As criações de Tatiana não serão tratadas enquanto cenário, no sentido habitual, mas como outros corpos e, portanto, também aos pedaços. Os bailarinos levam as peças daqui para lá e, tanto nos aquis quanto nos lás, vedam ou desobstruem alguns campos de visão. Nesse ato voluntário de recortar o espaço, como que aumentam a dimensão do que vinha sendo proposto desde o início, quando a companhia se dedicava a explorar as formas das esculturas preenchendo seus vazios com as partes de seus corpos. Ou seja, durante todo o tempo, há como que uma insistência em sublinhar que o ato de ver não é inocente, pois depende do ponto de onde se vê. Isto é, o que se vê é somente o que se pode ver, é sempre parcial, fresta ou janela - o que significa dizer: vê-se sempre um pedaço, aquilo que se dá a ver a quem está olhando daquele lugar.


O que Dani Lima e sua companhia mostram, todavia, vai mais fundo do que somente deixar claro
que nunca se vê a totalidade. Felizmente, embora pareça se deter na relação das partes com o todo (como a pergunta do título falsamente indica), o que o espetáculo propõe é a própria inexistência disso que se chama de todo. A obra demonstra, com soluções cênicas exemplares, que a totalidade não passa de uma convenção ontológica.

Quando especializa a discussão sobre o todo inexistente, detendo-se nessa outra forma de todo ao qual chamamos de pessoa, torna-se ainda mais instigante. Num movimento de montagem e desmontagem continuada, que ecoa o que vai sendo feito em tempo real com as peças de Tatiana, a companhia vai propondo que o conceito de pessoa também funciona por aí. Ao expor que as etiquetas de identificação exclusivas não existem, porque atributos são, quase sempre, compartilhados, instabiliza com grande sensibilidade a possibilidade de associação entre características e identidade. E depois de embaralhar quem é quem, vem o golpe magistral: nem o corpo, nem ele escapa. Os corpos sempre se precisam, assim como as partes das esculturas.


Olhar, identidade, atributos pseudopessoais, de repente, tudo se revela fruto de construção e não de observação. Não há nada pronto no mundo na forma de um objeto à espera de ser colhido e reconhecido pelo olhar. E para que considerações tão complexas, necessárias e pertinentes tenham chegado à formulação tão clara empreendida nessa criação, os excelentes desempenhos de Dani Lima, Alex Cassal, Clarice Silva, Edney D´Conti, Monica Burity, Rodrigo Maia, Vinicius Salles e Vivian Miller contaram muito. Ainda bem que, de vez em quando, companhias como essa nos lembram que a inteligência, quando existe, está nas idéias e nos corpos.


Helena Katz é crítica e pesquisadora de dança.

Publicado no site idança em 16/08/2004

Falam as partes do todo? / Roberto Pereira

Diálogo entre arte e ciências: Dani Lima cria método com nova coreografia
Roberto Pereira / Caderno B


Para a ciência, tão importante quanto o resultado de uma descoberta, é o seu processo de investigação: um bom método de pesquisa pode ser sempre usado novamente, para outras possíveis descobertas. A coreógrafa e bailarina carioca Dani Lima, em seu novo trabalho Falam as partes do todo?, que teve sua estréia nesta última sexta-feira no Espaço Cultural Sergio Porto, parece transportar essa idéia para um outro lugar que não apenas o da descoberta, mas também o da criação. O processo de investigação ao qual Dani e seus bailarinos se dedicaram nesses últimos tempos aparece em forma de espetáculo, forma que é apenas uma dentre tantas possíveis para um pensamento de dança em plena atividade. A generosidade com que o processo é desvelado aos olhos do público, além de mostrar sem receios suas fontes, mostra-se corajosamente como um método que pode, muitas vezes, ser reutilizado. Por ela mesma, ou por tantos outros criadores.

Pensando na relação entre o todo e as partes, Dani Lima elege alguns procedimentos cênicos que ajudam a pensar que, nas partes de qualquer organismo, estão as informações do todo. Para a tradução dessa idéia em dança, o diálogo com as esculturas/instalações da artista plástica Tatiana Grinberg parece ter sido a chave para outros tantos diálogos que aparecem em cena. A relação sinuosa entre espaço e tempo ali sugerida trafega na subversão de perspectivas, implodidas em sons advindos de diversas partes do teatro, em potências também diversas. Impossível falar em trilha sonora e cenário: existem apenas (e sobretudo) continuações dos corpos que ali dançam. Uma dança acontece entre o público e não para ele, apenas.

Um possível mapa da investigação que aqui aparece em forma de espetáculo pode ser traçado, para quem acompanha os trabalhos da coreógrafa: a residência do coreógrafo alemão Thomas Lehmen, no último Panorama RioArte de Dança, a obra de Lia Rodrigues, que Dani se dedica a estudar em sua pesquisa de mestrado, a curiosidade sobre a dança pós-moderna americana, entre tantas outras informações. Mas levando em conta a falibilidade de todo mapa, mais instigante parece ser prestar atenção em como essa investigação é partilhada por seus bailarinos, tão jovens e vigorosos. As idéias inquietas de Dani parecem encontrar abrigo sobretudo na qualidade e frescor da dança de Monica Burity, que desfila filigranas de pensamentos em seus movimentos.

Para Dani Lima, "viver sem certezas é viver em movimento constante de reaprendizagem". Sua generosidade e coragem em mostrar isso, faz de seu processo, sua criação. E faz dialogar sem clichês arte e ciência.

Publicado no Jornal do Brasil em 29/08/2003

Falam as partes do todo? / Silvia Soter

Em busca do movimento do corpo
Silvia Soter / Segundo Caderno


Não é por acaso que o título do último trabalho da Cia de Dança Dani Lima, em cartaz no Espaço Sérgio Porto até o próximo domingo, se organiza como uma pergunta . “Falam as partes do todo?” tem o cuidado de não ser uma afirmação para poder abrir a cada espectador uma possibilidade de reflexão, uma experiência interessante e delicada, alimentada pela dança, pelas obras da artista plástica Tatiana Grinberg e pela ambientação sonora de Felipe Rocha.

“Falam as partes do todo?” não é exatamente um espetáculo. O que talvez seja inesperado para o público que tem acompanhado a trajetória de Dani Lima, ex-integrante da Intrépida Trupe. Até então, o nome da coreógrafa esteve associado à dança aérea com cores do pop e ao universo feminino, suas marcas mais fortes. Se não é um espetáculo, também não é um work in progress no sentido de apresentar ao público o processo no lugar do resultado. O olhar do público é central nesse trabalho de Dani Lima. Na maioria das vezes, quando é dada ao espectador a possibilidade de acompanhar o processo de criação de uma obra, esse espectador tem a certeza de que é generosamente recebido num espaço do qual não faz parte. Ele é voyeur da intimidade do artista. Parte do interesse de conhecer as entranhas da criação se dá exatamente pelo fato de que aquele momento é único, íntimo e fechado a estranhos. Mas o que acontece em “Falam as partes do todo?” é de outra ordem.

O espectador não é de fato voyeur ou intruso. É a ele que a pergunta se destina já que se trata de investigar a dança a partir da recepção, daquilo que cada espectador pode (ou não) captar. Sem o espectador, “Falam as partes do todo?” não existiria.

O encontro entre os trabalhos e as inquietações de Dani Lima e de Tatiana Grinberg resultou num produto envolvente. A contribuição de Felipe Rocha é também fundamental para criar o espaço sonoro, visual e, às vezes, tátil, em que o espectador é mergulhado, sendo obrigado a se deslocar para escolher o que acompanhar, ainda assim sem dar conta de apreender o todo.

Os objetos construídos por Tatiana Grinberg serviram, visivelmente, como o elemento detonador de toda reflexão da peça, ganhando correspondência na dança que só é vista parcialmente e na música que se espalha, aos pedaços, pelo espaço. No entanto, o trabalho da artista plástica está tão presente que em alguns momentos o ressurgimento das peças se faz redundante.

Em “Falam as partes do todo?”, Dani Lima se afasta de suas referências anteriores para se aproximar de uma dança que se faz no corpo, buscando no movimento os caminhos para sua idéias, o que revela o amadurecimento da linguagem coreográfica dessa competente companhia.

Publicado no jornal O Globo em 30/08/2003

Falam as partes do todo? / Charles Feitosa

Para além das partes e do todo
Charles Feitosa


Tudo que o filósofo olha vira matéria-prima para a roda-viva do pensamento. Ver o mais recente trabalho coreográfico da Cia de Danca Dani Lima,
Falam as Partes do Todo?, gerou em mim um turbilhão de idéias. E o que eu vejo? Dani Lima toca, através da dança, uma das questões mais fundamentais da filosofia, a relação entre as partes e o todo. Eu vejo essa relação ser exposta através de temas aparentemente díspares, tais como a compreensão usual do corpo humano; a inserção do homem na sociedade e até a possibilidade de uma nova conjugação entre a dança e o cinema. Aqui vão alguns pensamentos que se apoderaram de mim durante e após o espetáculo.

Tradicionalmente o corpo humano é interpretado como um organismo, ou seja, um sistema harmônico (o todo), composto de órgãos e membros (as partes), onde cada elemento tem um papel programado e específico. Segundo esse ponto de vista, a saúde do todo depende de que cada parte cumpra a sua respectiva função. O organismo fica doente, entretanto, quando um membro ou orgão do corpo para de funcionar ou passa a trabalhar autônomamente (como um tumor). Nesse caso a medicina tradicional só conhece dois tipos de terapia, reabilitar ou extirpar o orgão debilitado. A idéia de corpo como um organismo, um todo composto de partes, é radicalmente desconstruída no espetáculo de Dani Lima. Na interação dos dançarinos com as obras de Tatiana Grinberg, o espectador, circulando por entre corpos e objetos através do palco, vê de cada vez e sob ângulos diferentes, membros destacados, pendentes e autônomos, seja uma língua sem a boca correspondente, uma mão sem o braço que a suporta, uma perna isolada de seu tronco. Essa visão das partes sem o todo causa às vezes um efeito cômico, outras vezes uma sensação de profundo estranhamento, mas não deixa ninguém indiferente. Os órgaos sem o corpo são estranhos porque agridem a organização usual da natureza que há em nós, um todo constítuido de partes. Trata-se portanto do primeiro passo para a construção de um outro corpo, para além do organismo, como um campo por onde circulam forças, com intensidades e direções sempre diferentes, onde cada membro pode assumir uma diversidade infinita de funções e o próprio corpo não se define mais como uma totalidade essencial, mas como um acontecimento singular e imprevisível.

O outro tema levantado, a meu ver, na coreografia de Dani Lima é o do lugar do indivíduo na sociedade. Também aqui o pensamento político tradicional costuma interpretar a sociedade como um corpo coletivo (o todo), onde cada indivíduo (a parte) tem uma função específica e planejada. Na cidade ideal de Platão, por exemplo, a República, cada cidadão tinha uma tarefa própria: preparar o pão, construir as casas ou guardar a cidade. Quem se recusasse a desempenhar seu papel estaria sujeito a uma terapia de reeducação ou a uma intervenção cirúrgica através do exílio. Na dança da companhia de Dani Lima vejo a relação parte/todo na sociedade sendo reinventada, especialmente na última coreografia, pra mim a mais bela e a mais emocionante. Nesse último ato a bailarina Vivian Miller movimenta-se durante 15 intensos minutos por todo palco, sem tocar nem uma vez seus pés no chão. Ela não é simplesmente carregada, mas sustentada pelos corpos dos outros dancarinos, que vão se revezando de um lugar para outro, a fim de que haja sempre a possibilidade de um novo passo, de uma nova saída. Vivian parece ter alguns de seus gestos preplanejados em uma cuidadosa coreografia, mas a todo momento ela precisa reestruturar sua estratégia, explorando a diversidade e singularidade dos corpos dos colegas e até do público presente na sala. Tal como um alpinista ela escala montanhas, mas de uma forma sensual e misteriosa. O interessante é que nem os caminhos nem as montanhas são preexistentes, vão sendo construídos por onde ela passa. O fluxo constante dos dançarinos e a tensão entre planejamento e improviso, embalados pela música de Felipe Rocha, compõem um cenário hipnotizante. No trabalho coreográfico de Dani Lima vejo uma ruptura sutil com a teoria política tradicional, que coloca o todo (a sociedade) como meta das partes (os indivíduos). Não se trata apenas de uma inversão, como se agora a meta fosse fazer com que o grupo trabalhasse para um de seus membros (mantendo a dançarina sustentada, por exemplo). A coreografia nos projeta muito mais além, para um lugar em que o todo não mais existe enquanto um sistema fechado e consequentemente, em que os indivíduos não são mais partes (só faz sentido falar de partes onde há uma totalidade). O que temos então são apenas seres diferentes, instáveis, autômomos, que se tocam e se distanciam de muitas maneiras, que se associam e desassociam conforme o contexto e a situação. Dançar junto não significa mais então que as partes busquem se fundir em uma comunidade harmoniosa e sincrônica, nem que uma totalidade se coloque a serviço de um de seus membros. Dançar em companhia se mostra como uma experiência festiva, onde singularidades encontram outras singularidades de maneira assimétrica; tornando-se elas próprias outras, muitas, plurais. Vejo aí uma rica metáfora para o viver em conjunto, enfim para qualquer ética ou política do futuro.

Finalmente encontro no espetáculo
Falam as Partes do Todo?
algumas idéias acerca da relação entre a dança e o cinema. Confesso que extrapolo um pouco aqui, mas fazer filosofia, do jeito que a entendo e a pratico, consiste em levar uma reflexão às ultimas consequências, mesmo que pareça estranho ou exagerado. Sabemos que tanto a dança como o cinema são artes do movimento, mas enquanto a dança pode expor o movimento do corpo em uma multiplicidade de perspectivas, o cinema esta restrito à bidimensionalidade da tela. Parece haver uma incompatibilidade fundamental entre a coreografia e o filme, pois enquanto a linguagem da dança pode trabalhar com o volume do corpo (na sua totalidade), a linguagem cinematográfica lida essencialmente com cortes, planos, enquadramentos (as partes). Fred Astaire, por exemplo, o grande dançarino do cinema norte-americano, fazia questão que a câmera nunca focalizasse apenas seus pés, braços ou quadris, enquanto estivesse dançando. Para ele o efeito estético de sua coreografia dependia fundamentalmente de que o espectador tivesse acesso a todo o seu corpo e não apenas a partes dele. Em diversos de seus filmes a câmera restringe-se a seguir seus passos como uma escrava fiel e submissa, em longos planos-sequência. Sabemos que o filme pode fazer muito mais do que apenas registrar continuamente o movimento de um corpo, mas desconfio que até agora ainda não aconteceu um encontro entre a dança e o cinema de modo que um não reprima o outro ou a si mesmo de alguma maneira. A performance da Companhia de Danca Dani Lima abre, ao meu ver, uma nova perspectiva para a relação entre a dança e o filme, ao demostrar que é posssível permitir que o corpo do dançarino seja constantemente partido e literalmente enquadrado, sem que com isso se perca a percepção estética do movimento coreográfico. A dança é levada aos limites da bidimensionalidade e supreendentemente permanece sendo dança. O que pode surgir daí, sinceramente não posso prever, mas pressinto novas possibilidades de explorar a dança através das lentes do cinema. Em mim, pelo menos, o movimento dos corpos já se transmutou em ciranda de idéias e pensamentos.

Publicado no site idança em 20/10/2005

Falam as partes do todo? / Matéria O Globo

Jogo de voyeurismo
Adriana Pavlova / Rioshow


Esqueça qualquer associação entre o nome da coreógrafa Dani Lima e a dança aérea que a consagrou. Rume para o Espaço Cultural Sérgio Porto com o corpo e a mente abertos para descobertas. “Falam as partes do todo?”, novíssimo espetáculo da companhia carioca liderada por Dani, põe o espectador no centro da cena, tal como um voyeur diante de corpos desconhecidos.

A coreógrafa deixa para trás, bem para trás mesmo, suas famosas criações nos ares e, no espetáculo que estréia hoje e segue em cartaz por duas semanas, ocupa como nunca o chão.

Dani e sua trupe trabalharam durante quatro meses com objetos criados pela artista plástica Tatiana Grinberg. Por objetos entenda-se paredes e quadrados com várias aberturas e orifícios. São eles que surgem no começo da apresentação, quando os bailarinos se espalham pelo linóleo instalado no Sérgio Porto, onde, aliás, não há qualquer aviso de onde o público deverá ficar.

— A platéia vira voyeur e é levada a questionar suas percepções habituais do espaço com o corpo, do espaço com a obra de arte e até mesmo do espaço com o próprio público — diz Dani, que, apesar da distância momentânea da dança aérea, assinará uma criação nas alturas para a Intrépida Trupe, companhia da qual é uma das fundadoras.

Para instigar ainda mais a platéia, os bailarinos propõem algumas charadas. Não raro, as pessoas são convidadas a olhar a movimentação deles por outros ângulos. Não vai surpreender se alguém, no meio da última parte do espetáculo, acabar misturando-se aos intérpretes.

— É um risco que se corre. A partir do momento em que não estabelecemos regras rígidas para o público, tudo pode acontecer — diz Dani.

Publicado no jornal O Globo em 22/08/2003

Falam as partes do todo? / Matéria JB

O jogo da dança: Dani Lima consolida linguagem experimental em novo trabalho
Ana Cecilia Martins / Caderno B

Dani Lima vem desenhando um caminho importante no cenário da dança carioca. E por que não dizer um caminho vertical, que partiu do ar, com os arrojados números de dança aérea, chegando ao solo, aposta de seu novo espetáculo? Não que Dani tenha abandonado as raízes circenses, ou que esta trajetória tenha um caráter evolutivo. Mas com Falam as partes do todo?, em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto, a bailarina e coreógrafa carioca consolida uma carreira que tem a experimentação como pilar e a maturidade artística como resultado.

A interação é o elemento chave dessa coreografia, que une na mesma cena obras de arte, textos, música, bailarinos e público. Ao entrar no espaço - sem separação entre palco e platéia - o espectador se depara com uma grande muralha formada por pequenos módulos brancos, criados pela artista plástica Tatiana Grinberg. Como formas vivas, as estruturas vão, ao longo do espetáculo, criando novas arquiteturas a partir da intervenção dos bailarinos que, dessa forma, jogam com a perspectiva do espectador.

- Me interessa sempre abrir caminhos na minha dança. Esse, de interagir com as obras da Tatiana, tem mostrado novas possibilidades. Também queremos fazer do público um agente ativo do espetáculo, o que é uma proposta arriscada, porém intencional - afirma Dani.

Lidar com novas linguagens não assusta a coreógrafa, que tem na bagagem experiências com a Intrépida Trupe, a direção coreográfica da recente versão de O grande circo místico, do Teatro Guaíra, além de espetáculos elogiados como os seus Vaidade e Digital brazuca, apresentados em 2001. Instalação sonora é agora mais um conceito incorporado ao seu trabalho.

- Fizemos uma colagem de frases que chega de forma diferente em cada parte da sala, evocando diversas percepções sonoras. É o que denominamos "surround tupiniquim" - explica o músico Felipe Rocha, que assina a trilha sonora.

As questões que envolvem a identidade corporal voltam a instigar Dani Lima, que idealizou junto com os cinco bailarinos de sua companhia (Vivian Muller, Mônica Burity, Vinicius Salles, Clarice Silva e Rodrigo Maia) recortes de espelhos com perfurações onde se encaixam braços, pernas, mãos e pés, criando um universo de formas híbridas.

- A idéia é provocar diferentes maneiras de ler os corpos - afirma a coreógrafa. Comandando a sua companhia desde 1997, Dani, que volta ao palco nessa nova coreografia, se coloca com uma das mais atuantes criadoras do movimentado cenário da dança carioca, conforme avalia a coreógrafa e curadora de dança Lia Rodrigues:

- Ela vem abrindo um caminho novo de uma forma dedicada e inteligente. Sua trajetória tem consistência e nesse trabalho mostra que está querendo pisar com mais firmeza no chão.

Dani reconhece que os tecidos, elemento chave da dança aérea, estão ficando cada vez mais ausentes nas criações de seu grupo.

- Não que tenha abandonado a dança aérea. As minhas bases continuam as mesmas. Minhas idéias é que vão se expandindo - afirma Dani, que assina duas coreografias para o novo espetáculo da Intrépida Trupe.

Publicado no Jornal do Brasil em 24/08/2003

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