segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Pequeno inventário de lugares-comuns | Silvia Soter

Gestos de poesia e delicadeza nas coisas simples e banais do dia a dia
Silvia Soter / Segundo Caderno


Não foram poucas as tentativas, ao longo das últimas décadas, na dança e no teatro, de fazer com que a cena não fosse sempre e apenas o lugar do extraordinário. Esse deslocamento tem sido uma importante estratégia artística em muitos campos. Marcel Duchamp ou ainda, na dança, a geração da Judson Church, foram alguns dos artistas que fizeram avançar esta questão. No entanto, mesmo o que é simples, natural e banal, ganha um outro status quando ocupa a cena. A peça “Pequeno inventário de lugares-comuns”, projeto concebido pela coreógrafa Dani Lima, tem aí o seu maior desafio. Dani e mais quatro artistas, em processo de colaboração, trazem o foco justamente para aquilo que passa desapercebido no cotidiano.


A ambientação criada pelo artista plástico João Modé reforça a posição de fronteira entre espetáculo e instalação. Embalagens, peças de roupa, brinquedos, alimentos, utensílios domésticos, móveis e outros, estão dispostos em cena, formando um conjunto de 125 objetos pessoais e de uso cotidiano. Os vídeos de Paola Barreto e Lucas Canavarro trazem ainda imagens do dia-a-dia de uma casa.

De início, Dani Lima, Laura Samy, Vivian Miller, Felipe Rocha e Paulo Mantuano manipulam estes objetos, deslocando-os, rearranjando-os, combinando-os a partir de critérios diversos. Diante dos olhos do público, a composição realizada pelos artistas, ainda que breve, promove associações de idéias e produz novos sentidos para os objetos. O nonsense acaba por se transformar em sentido. Ao mesmo tempo, dá o tom do estado necessário para se entregar a essa peça. A projeção da combinação de objetos em pares é um achado. Um pouco à maneira das crianças que transformam pedrinhas em brinquedo, essa cena amplia, de fato, a visão sobre o pequeno e mostra a poesia do simples.


A dança propriamente dita surge em duos e solos e tem também no cotidiano sua fonte. A tentativa de integrar a dança à malha dos objetos é visível. Neste caso, integrá-la é não dar a ela destaque demais, é buscar um equilíbrio de valor entre a dança e os outros elementos da peça. São nos solos de Felipe Rocha, de Dani Lima, de Laura Samy e no duo das últimas, que a justa medida entre gesto e dança se realiza, já que a coreografia torna-se mais interessante quando consegue partir da gestual sem chegar em seu limite mais abstrato. Já os duos de Paulo Mantuano e Vivian Miller, muitas vezes, possuem um registro distinto de toda a peça. A dança, neste caso, parece descolada do ritmo e do conjunto objetos-gestos-imagens.

Ainda que, em cena, quase nunca se consiga escapar de transformar qualquer coisa em algo extra-ordinário, “Pequeno inventário de lugares-comuns” dá conta de tratar do que pretende com muita poesia e delicadeza. Traz para o centro a vida como John Lennon um dia sugeriu: como aquilo que acontece quando estamos fazendo planos.

Publicado no jornal O Globo em 26/09/2009

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