segunda-feira, 13 de abril de 2009

Vida real em 3 capítulos | Almanaque Virtual

A Cia Dani Lima mergulha na identidade corporal brasileira e cria um espetáculo onde mesmo o que não aparece é belo
Mario Piragibe / Almanaque Virtual

Um espetáculo de dança que se proponha a lidar com a questão da identidade contemporânea encontra-se obrigatoriamente diante de um vasto campo para manobra e exploração. O indivíduo desse início de século XXI, segundo alguns pensadores, é múltiplo e contraditório por natureza, sua identidade define-se pela superposição de referências (ou, como afirma Stuart Hall, encontra-se descentrado). Uma investigação dessa identidade no contexto de uma apresentação artística é um exercício de risco, mas também uma necessidade.

“Manual de instruções”, que a Cia Dani Lima traz ao Rio após alguns períodos de convivência com profissionais de todo o mundo em festivais internacionais e residências artísticas, busca localizar alguns elementos de uma identidade corporal brasileira. Ao que tudo indica essa convivência da artista com colegas de outros países encaminhou-se a uma determinada percepção de si mesma atravessada pelas percepções de um modo de ser brasileiro construído por indivíduos de outras nacionalidades. Como esse entendimento da identidade afirma-se por ser um conjunto de percepções, “Manual de instruções”, que se propõe a refletir essa questão, é um espetáculo rico em estímulos e provocações sensoriais. A beleza dos movimentos, o emprego de ilusões de ótica, a combinação de imagens e palavras, os silêncios calculados.

Há no espetáculo uma preocupação em subverter as expectativas do espectador com vistas a reorientar seu olhar. A atenção do público é guiada com precisão e delicadeza. O questionamento que se apresenta logo de início atua fortemente sobre essa “subversão” que mencionei, pois é feito um questionamento acerca da própria identidade da dança como linguagem artística. O figurino casual, a ausência da música ao longo de quase toda a apresentação, o palco praticamente despojado de qualquer elemento cenográfico, a iluminação inteiramente feita com lâmpadas fluorescentes (a chamada “luz fria”), a voz dos bailarinos, que constantemente quebram o silêncio que deles se espera para explicar os caminhos da apresentação, apresentam um questionamento evidente acerca das convenções entendidas a priori como parte do vocabulário da dança. Essa escolha na caracterização da apresentação, que a trata como algo ainda em construção, como um momento não obrigatoriamente culminante de uma investigação artística, vem a falar perfeitamente bem, não apenas das considerações feitas a respeito das artes do espetáculo de nossos dias, mas também do caráter móvel e inacabado da noção de uma identidade.

Os momentos (e movimentos) do espetáculo foram criados tendo como base os relatos de experiências pessoais dos bailarinos, o que determina bem o acerto da escolha de como se lidar com a questão de como os movimentos (no espaço e no tempo) de seus corpos ajudam a dizer quem são, e a que grupo humano pertencem. Essa investigação da identidade corporal brasileira não poderia se apresentar, à luz das considerações contemporâneas sobre o tema, de maneira melhor que com a sobreposição de narrativas individuais, o que dá a perceber sua vastidão e variedade de elementos. Nesse conjunto de idéias e vivências houve a clareza de se reconhecer que construções estereotípicas (máscaras do Zé Carioca, rótulos sociais, samba) também estão contidas na massa informe da identidade nacional. Que nós também somos formados pelos equívocos e generalizações que norteiam a idéia que o resto do mundo tem de nós.

“Manual de instruções” é uma festa para os sentidos. Consegue o feito de aliar consistência, em todos as questões que levanta, a humor, interesse, beleza. Não descuida do prazer por um instante que seja, e cria momentos em que o deleite visual confunde-se com o cômico, como na aula de samba em inglês, o método de vestir e desvestir uma camiseta, e a impagável “história da minha bacia”.

Mas talvez a contribuição mais intensa que “Manual de instruções” tenha a dar à nossa memória esteja nas ausências que o espetáculo invoca. Os desenhos feitos no ar, as menções à dança clássica despojada do aparato que a caracteriza, as referências ao que não aconteceu no espetáculo. A imposição sobre o palco do que não está lá cria momentos de forte impacto emocional e beleza. Nós, como indivíduos e como coletividade, somos formados também – ou de fato – pelo que resta daquilo que não somos, estamos preenchidos pelo tanto que não existe em nós. Como no belo momento em que a bailarina Vivian Miller nos apresenta um solo emocionante que não conseguiu preparar. A música toca para um palco vazio, e nós, das cadeiras, assistimos ao belo conjunto de possibilidades que invade inelutavelmente nossas cabeças.

Para ler:
O que vemos, o que nos olha. Georges Didi-Huberman (editora 34)
Identidade cultural na pós-modernidade. Stuart Hall (editora DP&A)

Publicado no Almanaque Virtual em 01/07/2006

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