quarta-feira, 1 de abril de 2009

Falam as partes do todo? / Helena Katz

IDÉIAS E CORPOS INTELIGENTES
Helena Katz / Estado de São Paulo


Como se sabe, a dança contemporânea não traz respostas – o que dificulta bastante a sua aceitação. A sua mais singular característica, exatamente a que atrapalha a sua comunicação, está no fato de sempre fazer perguntas. A nós, sujeitos que entramos em contato com as suas manifestações, cabe buscar descobrir qual é a pergunta. Evidentemente, essa pergunta não precisa se apresentar na forma de um enunciado com o sinal gráfico de interrogação. Trata-se do modo de transformar o assunto da obra numa questão, um jeito de problematizá-lo, investigá-lo, refletir sobre seus caminhos, desdobramentos, possibilidades de realização. Às vezes, como no caso do mais recente espetáculo de Dani Lima, a sua explicitação no título mais atrapalha do que favorece.


O título nos pergunta:
Falam as partes do todo? e, quando se adentra, a hierarquia palco-platéia está dissolvida. Além de não existirem cadeiras propiciadoras de uma observação comandada pela perspectiva renascentista, estabelece-se um jogo entre o que se pode e o que não se pode ver. Com o espaço tomado por esculturas de Tatiana Grinberg, que convidam à circulação, os bailarinos exploram, com partes de seus corpos, os orifícios e as superfícies das obras, também espalhadas aos pedaços.

As criações de Tatiana não serão tratadas enquanto cenário, no sentido habitual, mas como outros corpos e, portanto, também aos pedaços. Os bailarinos levam as peças daqui para lá e, tanto nos aquis quanto nos lás, vedam ou desobstruem alguns campos de visão. Nesse ato voluntário de recortar o espaço, como que aumentam a dimensão do que vinha sendo proposto desde o início, quando a companhia se dedicava a explorar as formas das esculturas preenchendo seus vazios com as partes de seus corpos. Ou seja, durante todo o tempo, há como que uma insistência em sublinhar que o ato de ver não é inocente, pois depende do ponto de onde se vê. Isto é, o que se vê é somente o que se pode ver, é sempre parcial, fresta ou janela - o que significa dizer: vê-se sempre um pedaço, aquilo que se dá a ver a quem está olhando daquele lugar.


O que Dani Lima e sua companhia mostram, todavia, vai mais fundo do que somente deixar claro
que nunca se vê a totalidade. Felizmente, embora pareça se deter na relação das partes com o todo (como a pergunta do título falsamente indica), o que o espetáculo propõe é a própria inexistência disso que se chama de todo. A obra demonstra, com soluções cênicas exemplares, que a totalidade não passa de uma convenção ontológica.

Quando especializa a discussão sobre o todo inexistente, detendo-se nessa outra forma de todo ao qual chamamos de pessoa, torna-se ainda mais instigante. Num movimento de montagem e desmontagem continuada, que ecoa o que vai sendo feito em tempo real com as peças de Tatiana, a companhia vai propondo que o conceito de pessoa também funciona por aí. Ao expor que as etiquetas de identificação exclusivas não existem, porque atributos são, quase sempre, compartilhados, instabiliza com grande sensibilidade a possibilidade de associação entre características e identidade. E depois de embaralhar quem é quem, vem o golpe magistral: nem o corpo, nem ele escapa. Os corpos sempre se precisam, assim como as partes das esculturas.


Olhar, identidade, atributos pseudopessoais, de repente, tudo se revela fruto de construção e não de observação. Não há nada pronto no mundo na forma de um objeto à espera de ser colhido e reconhecido pelo olhar. E para que considerações tão complexas, necessárias e pertinentes tenham chegado à formulação tão clara empreendida nessa criação, os excelentes desempenhos de Dani Lima, Alex Cassal, Clarice Silva, Edney D´Conti, Monica Burity, Rodrigo Maia, Vinicius Salles e Vivian Miller contaram muito. Ainda bem que, de vez em quando, companhias como essa nos lembram que a inteligência, quando existe, está nas idéias e nos corpos.


Helena Katz é crítica e pesquisadora de dança.

Publicado no site idança em 16/08/2004

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